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Inteligência Artificial nas licitações: presente e futuro

A era da Inteligência Artificial (IA) chegou. E já chegou (há alguns anos) também na área de licitações e contratações públicas. Um exemplo é a utilização dos robôs de lances — prática utilizada inicialmente pelas empresas ainda quando predominava o famoso “tempo randômico” nos pregões eletrônicos. 

Em tempos de ChatGPT, Midjourney e Deep Fake, como será que as contratações públicas serão afetadas? Bom, pretendo neste artigo mostrar ótimas iniciativas que encontrei e perspectivas de como poderão ser as próximas aplicações da inteligência artificial nas licitações.    

Robô de lances: IA para os fornecedores

Basicamente, o robô de lances permite aos fornecedores automatizar o envio de lances durante uma disputa eletrônica. O objetivo é evitar que uma pessoa precise manualmente inserir um lance, o que pode acarretar erros de preenchimento e o fracasso em uma disputa.   

Como disse no início desse texto, a utilização do robô de lances foi uma das primeiras aplicações de uso da inteligência artificial em licitações. Existem registros que a identificação desses robôs começou a ser percebida desde 2004¹. 

Além disso, o Tribunal de Contas da União, em 2011², decidiu que o uso dos robôs poderiam violar o princípio da isonomia, recomendando que o órgão federal responsável pelo antigo Comprasnet deveria inibir ou limitar o seu uso. Portanto, o uso do robô de lances tem, seguramente, no mínimo 15 anos de existência.

Eu acredito que a discussão de proibir o uso do robô de lances foi superada, já que houve a mudança de critério de disputa. Antes, havia o tempo randômico de até 30 minutos, que poderia realmente beneficiar a empresa que usava o robô. 

Agora, no modo de disputa aberto do pregão eletrônico, a disputa é prorrogada a cada 2 minutos, caso tenha um novo lance. Sendo assim, a velocidade de inserção de um lance não faz tanta diferença. Além disso, para garantir a isonomia, o novo sistema Compras.gov permite a automatização dos lances pelos fornecedores, com fundamento no art. 19 da Instrução Normativa SEGES/ME Nº 73, de 30 de setembro de 2022:

Art. 19. Quando do cadastramento da proposta, na forma estabelecida no art. 18, o licitante poderá parametrizar o seu valor final mínimo ou o seu percentual de desconto final máximo e obedecerá às seguintes regras:

I – a aplicação do intervalo mínimo de diferença de valores ou de percentuais entre os lances, que incidirá tanto em relação aos lances intermediários quanto em relação ao lance que cobrir a melhor oferta; e

II – os lances serão de envio automático pelo sistema, respeitado o valor final mínimo estabelecido e o intervalo de que trata o inciso I.

§ 1º O valor final mínimo ou o percentual de desconto final máximo de que trata o caput poderá ser alterado pelo fornecedor durante a fase de disputa, sendo vedado:

I –  valor superior a lance já registrado pelo fornecedor no sistema, quando adotado o critério de julgamento por menor preço; e

II – percentual de desconto inferior a lance já registrado pelo fornecedor no sistema, quando adotado o critério de julgamento por maior desconto.

§ 2º O valor final mínimo ou o percentual de desconto final máximo parametrizado na forma do caput possuirá caráter sigiloso para os demais fornecedores e para o órgão ou entidade promotora da licitação, podendo ser disponibilizado estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno.

Sendo assim, o uso do robô de lances já é uma realidade, e uma boa ferramenta para os fornecedores.

Inteligência Artificial para os Tribunais de Contas

Outra realidade é a utilização da IA pelos Tribunais de Contas em diversas ferramentas que auxiliam o trabalho de auditoria e controle das contas públicas. Destaco a seguir algumas ferramentas usadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU)³:

  • ALICE – Análise de Licitações e Editais: realiza análise de editais e atas de pregão para identificar riscos em licitações.   
  • SOFIA – Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor: auxilia na elaboração de instruções, relatórios e documentos.   
  • ÁGATA – Aplicação Geradora de Análise Textual com Aprendizado: apoio na construção de bases de treinamento para algoritmos de classificação automática.   
  • MONICA – Monitoramento Integrado para o Controle de Aquisições: painel que abrange informações sobre aquisições públicas, como licitações e aquisições diretas.   
  • SAO – Sistema de Análise de Orçamentos: ferramenta de avaliação de risco em orçamentos de obras públicas.   
  • ADELE – Análise de Disputa em Licitações Eletrônicas: painel que apresenta a dinâmica de lances em pregões eletrônicos.   
  • MARINA – Mapa de Riscos nas Aquisições: avalia o nível de risco das contratações do Poder Executivo Federal.   
  • CARINA – Crawler e Analisador de Registros da Imprensa Nacional: rastreia e analisa informações em publicações do Diário Oficial da União sobre aquisições governamentais.   

Essas são apenas algumas das ferramentas usadas pelo TCU, que realiza, de fato, um trabalho louvável no aspecto da inovação na gestão pública. 

Porém, não é só em âmbito federal que a inteligência artificial nas licitações é utilizada. O Tribunal de Contas de Santa Catarina desenvolveu um sistema de inteligência artificial que pretende analisar 100% das licitações realizadas no estado. O sistema denominado VigIA procura irregularidades nos editais publicados oficialmente pelo próprio governo do estado e pelos seus municípios.4 

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Perspectivas para o futuro

Vejo que uma maior evolução é necessária no aspecto do planejamento da licitação, de forma que a inteligência artificial seja aplicada na elaboração dos documentos que compõem a fase preparatória, como o Estudo Técnico Preliminar, o Termo de Referência e na elaboração do edital da licitação, entre outros.

Por exemplo, na grande maioria dos órgãos, a etapa de elaboração do edital consiste basicamente em copiar manualmente partes de um ou mais editais com objeto semelhante. Ainda que a etapa se inicie a partir de um modelo, muito trabalho manual do agente público ocorre por meio de digitação das partes do edital. 

Um bom sistema para elaborar os editais através da utilização da inteligência artificial seria possível, tornando os editais mais objetivos, enxutos e “inteligentes”. Um caminho interessante seria que esse sistema tivesse inclusive uma comunicação com os referidos sistemas de IA já utilizados pelos Tribunais de Contas. Dessa forma, haveria um trabalho preventivo de controle de regularidade.

Assim também defende Aldem Johnston Barbosa Araújo5:

O controle (interno e externo) praticamente em tempo real exercido com o uso de uma IA sobre instrumentos produzidos a partir do emprego de outra IA findará por chancelar atos e contratos praticamente “inquestionáveis”, pelo menos no âmbito administrativo.

(…)

E sejamos honestos, com o passar dos anos, qual a chance de um licitante questionar, de forma exitosa, um edital que foi elaborado (fazendo-se uso de IA) tendo por base as melhores experiências de contratações da administração pública e que foi aprovado (com emprego de IA) pelo Tribunal de Contas? A pergunta, no meu sentir, é meramente retórica.

Os benefícios da IA também poderiam ser aplicados na fase de julgamento da proposta e habilitação do fornecedor, de modo instrumental à atuação do agente de contratação. Nesse sentido, sugere Luiz Felipe Hadlich Miguel6:

No âmbito das contratações públicas, é perfeitamente possível que um robô auxilie os agentes públicos no curso do processo. Poderia, por exemplo, buscar eventuais sanções sofridas pelos partícipes em certames anteriores, seu faturamento atual (para saber se gozariam dos benefícios concedidos pela lei às micro e pequenas empresas), ou mesmo quais seus sócios, no intuito de verificar se, dentre eles, algum detém vínculo com o órgão contratante.    

De certa forma, em âmbito federal, alguns desses indicadores citados pelo autor já podem ser consultados pelo Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores — como as sanções sofridas pelas empresas. Entretanto, o uso efetivo da IA com uma ampla base de dados e maior poder de processamento, poderá aumentar ainda mais a potencialidade da ferramenta.  

E qual o papel do agente de contratação/pregoeiro diante disso tudo? Será ele substituído pela IA?

Agente de contratação x Inteligência Artificial nas licitações 

A IA será uma ferramenta para o agente de contratação. Não considero prudente, nem possível, uma substituição completa do agente de contratação. 

A IA não deve tomar uma decisão para o agente público, ela pode indicar e apresentar um cenário. Ela não vai negociar com o fornecedor, ainda que possa, diante de uma base de dados de contratações anteriores, apresentar os preços contratados por esse fornecedor. Ela não deve escrever totalmente uma resposta ao recurso, sem a aprovação e ajustes do próprio agente de contratação.

Ou seja, a IA tem potencial de auxiliar (e muito) o agente de contratação. Mas, para isso, ele precisa ser capacitado para atuar na área de licitações e contratos, a IA não vai substituir isso. A IA não é capaz de atuar de forma ética, apenas o agente público poderá e deverá fazer as ponderações éticas tão necessárias nessa área de atuação.

O futuro é promissor.

Referências: 

¹ O uso do robô nas licitações. Effecti. Disponível em: https://www.effecti.com.br/blog/robo-nas-licitacoes/ . Acesso em: 16 de julho de 2024.

² Acórdão 2601/2011 – Plenário. Tribunal de Contas da União. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-18271 . Acesso em: 16 de julho de 2024.

³ Uso de inteligência artificial aprimora processos internos no Tribunal de Contas da União. Tribunal de Contas da União. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/uso-de-inteligencia-artificial-aprimora-processos-internos-no-tcu.htm . Acesso em: 16 de julho de 2024.

4 Inteligência artificial desenvolvida pelo TCE/SC vai permitir análise de 100% do editais de licitação; iniciativa é pioneira entre os TCs do país. Tribunal de Contas de Santa Catarina. Disponível em: https://www.tcesc.tc.br/inteligencia-artificial-desenvolvida-pelo-tcesc-vai-permitir-analise-de-100-do-editais-de-licitacao . Acesso em: 16 de julho de 2024.

5 As licitações, os contratos e o controle do futuro. Aldem Johnston Barbosa Araújo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-27/as-licitacoes-os-contratos-e-o-controle-do-futuro/. Acesso em: 17 de julho de 2024.

6 Miguel, Luiz Felipe Hadlich . Compras públicas inteligentes: e-marketplace público, o fim das cláusulas exorbitantes. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024. 182 p. ISBN 978-85-519-2841.    

Super Pregoeiro: o faz-tudo

Há alguns meses, participei de forma online do 19º Congresso Brasileiro de Pregoeiros e Agentes de Contratação. Acompanhando os comentários dos participantes via chat, percebi que muitos alegavam o acúmulo de funções, atuando em diversas etapas de um processo licitatório, como na fase preparatória e na fase externa, ou na fase preparatória e na execução do contrato. É o super agente de contratação/super pregoeiro(a).

Atribuições do pregoeiro/agente de contratação

Todo agente público possui atribuições relacionadas ao cargo que ocupa. Essas atribuições podem estar definidas em lei, ou outro normativo federal/estadual/municipal. Entretanto, cargo público e função pública são conceitos diferentes. Na grande maioria dos órgãos, o agente de contratação/pregoeiro(a) é uma designação de função e não um cargo público.    

Por que estou dizendo isso? Um servidor público pode realizar diversas atividades em seu órgão, desde que previstas na descrição do seu cargo. Entretanto, quando designado pregoeiro e exercendo esta função, esse agente deve realizar atividades específicas previstas na legislação. 

Sendo assim, vejamos o que dispõe a Lei n.º 14.133/2021 sobre o agente de contratação, pregoeiro e comissão de contratação:

Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:

(…)

L – comissão de contratação: conjunto de agentes públicos indicados pela Administração, em caráter permanente ou especial, com a função de receber, examinar e julgar documentos relativos às licitações e aos procedimentos auxiliares;

(…)

LX – agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

(…)

Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

§ 1º O agente de contratação será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe.

(…)

§ 3º As regras relativas à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos de que trata esta Lei serão estabelecidas em regulamento, e deverá ser prevista a possibilidade de eles contarem com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno para o desempenho das funções essenciais à execução do disposto nesta Lei.   (Regulamento)   Vigência

§ 4º Em licitação que envolva bens ou serviços especiais cujo objeto não seja rotineiramente contratado pela Administração, poderá ser contratado, por prazo determinado, serviço de empresa ou de profissional especializado para assessorar os agentes públicos responsáveis pela condução da licitação.

§ 5º Em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro.

As atribuições da comissão de contratação e do agente de contratação são basicamente as mesmas. A diferença reside no fato que o agente é uma única pessoa, e a comissão é um grupo de pessoas.  

O § 3º do art. 8º da Lei n.º 14.133/2021 estabeleceu que as regras de atuação do agente/comissão serão definidas em regulamento. Sendo assim, em âmbito federal, foi publicado o Decreto n.º 11.246, de 27 de outubro de 2022, que definiu no seu art. 14 como deve ocorrer a atuação do agente de contratação.

Da leitura desses dispositivos, podemos extrair as seguintes atribuições da função de agente de contratação/pregoeiro(a):

  • Acompanhar o trâmite da licitação;
  • Zelar pelo bom andamento do certame até a homologação;
  • Se necessário, demandar às unidades de contratações para saneamento da fase preparatória;
  • Promover diligências para cumprimento do calendário de contratação;
  • Tomar decisões em prol da boa condução da licitação;
  • Dar impulso ao procedimento licitatório;
  • Receber, examinar e decidir as impugnações e os pedidos de esclarecimentos, por meio de subsídios aos responsáveis pela elaboração dos documentos;
  • Negociar, quando for o caso, condições mais vantajosas com o primeiro colocado;
  • Verificar conformidade e aceitar proposta mais bem classificada;
  • Sanear erros ou falhas que não alterem a substância das propostas;
  • Verificar e julgar as condições de habilitação;
  • Indicar o vencedor do certame;
  • Conduzir os trabalhos da equipe de apoio;
  • Encaminhar o processo instruído, após encerradas as fases de julgamento e de habilitação e exauridos os recursos administrativos, à autoridade superior para adjudicação e para homologação.

Qualquer gestor público que conhece o mínimo de um processo licitatório, sabe que isso não é pouco. São atividades de grande responsabilidade que demandam bastante tempo, principalmente quando a licitação refere-se a um objeto mais complexo ou com muitos itens.

Veja que essas são atribuições de uma única licitação — muitos agentes de contratação lidam com várias licitações ao mesmo tempo. Ou seja, multiplique as atribuições acima por 2x, 3x, 4x, 5x, etc.

Nesse sentido, veja o que diz o Prof. Joel de Menezes Niebuhr¹ sobre o papel do agente de contratação:

A responsabilidade do agente de contratação, do pregoeiro e da comissão de contratação é reflexo das suas atribuições. Eles são responsáveis por aquilo que fazem (comportamento comissivo) ou pelo que deixam de fazer (comportamento omissivo) diante das competências que lhes foram acometidas. Não devem, por via de consequência, ser responsabilizados por atos ou fatos estranhos às suas atribuições, salvo se atuarem com desvio de função. (grifei)

Então, fica a pergunta: é razoável atribuir ainda mais funções e atividades relacionadas a um mesmo agente de contratação?

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A fim de tentar, de uma vez por todas, esclarecer o papel do pregoeiro na fase preparatória, o citado Decreto n.º 11.246/2022 definiu expressamente o que o pregoeiro não está obrigado a fazer:    

§ 1º  O agente de contratação será auxiliado, na fase externa, por equipe de apoio, de que trata o art. 4º, e responderá individualmente pelos atos que praticar, exceto quando induzido a erro pela atuação da equipe.

§ 2º  A atuação do agente de contratação na fase preparatória deverá ater-se ao acompanhamento e às eventuais diligências para o fluxo regular da instrução processual.

§ 3º  Na hipótese prevista no § 2º, o agente de contratações estará desobrigado da elaboração de estudos preliminares, de projetos e de anteprojetos, de termos de referência, de pesquisas de preço e, preferencialmente, de minutas de editais.

Portanto, está definido no regulamento federal o que pregoeiro não deve fazer:

  • Elaboração de Estudo Técnico Preliminar;
  • Elaboração de projetos e anteprojetos;
  • Elaboração de Termo de Referência;
  • Realização da pesquisa de preços;
  • Elaboração do Edital. 

Riscos da sobrecarga de atribuições do pregoeiro

Diversos riscos estão envolvidos quando a autoridade competente permite atribuir ao pregoeiro ainda mais atividades, além daquelas previstas nos normativos. Cito a seguir quatro principais riscos envolvidos.

Descumprimento ao princípio da segregação de funções

O Tribunal de Contas de União já decidiu diversas vezes que atribuir ao pregoeiro atividades alheias às suas competências, trata-se de uma irregularidade. Veja, por exemplo, o Acórdão 3381/2013 – Plenário e o Acórdão 1372/2019 – Plenário

Outra consequência da não observância ao princípio da segregação de funções é possibilitar que o agente público, mal-intencionado, esconda algum erro cometido ou, pior, cometa uma fraude à licitação, por meio de conluio com o fornecedor. 

Aliás, é exatamente isso que prevê o art. 12 do Decreto n.º 11.246/2022:

Princípio da segregação das funções

Art. 12.  O princípio da segregação das funções veda a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na contratação.

Parágrafo único.  A aplicação do princípio da segregação de funções de que trata o caput:

I –  será avaliada na situação fática processual; e

II – poderá ser ajustada, no caso concreto, em razão:

a) da consolidação das linhas de defesa; e

b) de características do caso concreto tais como o valor e a complexidade do objeto da contratação.

Desempenho inferior do pregoeiro 

Sobrecarregar um agente de contratação gera um impacto negativo no desempenho das licitações que o mesmo conduz. Essa foi a conclusão de Almeida e Sano (2019)²:

Sobre os aspectos organizacionais foi evidenciado, nos discursos dos entrevistados, que o acúmulo de outras funções, concomitantemente com a atividade de pregoeiro, impactou negativamente sua conduta. Os pregoeiros não estão concentrados exclusivamente na execução das atividades de compras e constata-se que o acúmulo de funções ao qual os pregoeiros do CLBI estão submetidos remete à falta de priorização da função compras no núcleo estratégico da organização, de acordo com os ensinamentos de Baily et al. (2008).

Fuga dos agentes públicos

Os servidores públicos que estão cientes das atribuições do agente de contratação, e que sabem das diversas vezes em que os órgãos de controle já multaram e responsabilizaram esses agentes, vão fugir o máximo possível dessa função. 

Seja por meio de remoções, permutas, transferências, redistribuições, entre outros institutos de movimentação de pessoal, aquele servidor vai tentar sair quanto antes dessa função. Ou seja, existe uma perda real de talentos e bons profissionais. E isso se amplifica ainda mais quando ocorre a sobrecarga de atribuições. 

É claro que existem aquelas pessoas com uma motivação intrínseca, que se identificam com a área e com o valor público que podem entregar. Todavia, posso atestar que vi um número muito maior de pessoas querendo sair, em comparação àquelas que gostariam de entrar.

Reflexos na saúde mental e física

É provável que, com a sobrecarga de trabalho, a pessoa desenvolva um stress crônico, ansiedade generalizada ou uma síndrome de burnout:

Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional é um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. A principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho

Um diagnóstico como esse vai, invariavelmente, afastar o agente público dessa função e prejudicar o andamento de uma ou mais licitações.

O papel da autoridade máxima  

A Lei n.14.133/2021 estabelece de forma muito clara a importância e o papel da autoridade máxima do órgão no que se refere ao gerenciamento das contratações. É a ela que cabe promover a gestão por competências (art. 7º, caput), observar o princípio da segregação de funções (art. 7º, § 1) e implementar a governança das contratações (art. 11, parágrafo único). 

Não cabe à autoridade se afastar dessa responsabilidade ou da área de compras de seu órgão. Sem a sua intervenção, o super pregoeiro vai continuar existindo e sendo um risco para a eficiência organizacional. 

E você? É um super pregoeiro no órgão em que trabalha? Deixe um comentário aqui no site ou no meu Instagram.

Espero que esse texto tenha sido útil para você, e possa te ajudar de alguma forma.

Até o próximo post!

Referências: 

¹ NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5. ed. 1. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 1247 p. ISBN 978-65-5518-330-6.

² Almeida, A. A. M. de, & Sano, H. (2019). Fatores que influenciaram as condutas dos pregoeiros do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI). Revista De Administração Pública, 53(2), 331–348. Recuperado de https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/78501

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