Você já ouviu falar no “café de licitação”? É um termo popular que algumas pessoas utilizam para definir aquele café adquirido por órgãos públicos que tem a fama de ser ruim e de má qualidade.
Infelizmente, os produtos adquiridos em licitações têm a má fama de ser de baixa qualidade ou mais caros que o normal. Em alguns casos, não é só fama, é uma realidade. Neste artigo, não vou tratar da questão do preço, mas gostaria de te explicar porque alguns produtos adquiridos pela Administração Pública acabam sendo de baixa qualidade.
Veja também algumas dicas de como fazer a especificação de produtos e uma boa perspectiva que a nova lei de licitações oferece.
Subjetividade na decisão de compra
Pense na seguinte situação: você trabalha em uma empresa privada, a equipe do seu setor de trabalho tem o hábito de tomar café, pago pela sua chefia com recursos da empresa. Está acabando o pó de café e seu chefe te pede para comprar aproximadamente 10 pacotes de café para “abastecer” seu setor. Ele te dá o dinheiro e pede para que você traga a nota fiscal da compra, com o café.
Assim, você atende ao pedido de seu chefe e se dirige ao supermercado para fazer a compra. Chegando no supermercado, você tem 5 marcas diferentes de café. Agora, eu te pergunto, como você escolhe a marca que vai levar?

Bom, como você não quer entregar ao seu chefe e a sua equipe um café com gosto de cimento, você vai escolher uma marca que represente boa qualidade, digamos que seja a Pilão.
Você pega os 10 pacotes de café Pilão, faz o pagamento, pega a nota fiscal e entrega o café e a nota fiscal para seu chefe. Sua equipe fica satisfeita com sua compra e vida que segue.
Veja que sua escolha pelo café Pilão foi subjetiva, correto? Foi uma decisão pessoal, levando em consideração a reputação da marca, e, talvez, seu próprio histórico de consumo.
É assim que todos nós compramos produtos e contratamos serviços para nossas vidas. Não é uma decisão profundamente técnica, envolve aspectos bem subjetivos.
Parabéns! Agora você é um concursado!
Você gostava da sua empresa, mas procurava uma carreira mais estável. Depois de muito estudar para concursos públicos, você finalmente consegue passar em um concurso, toma posse e começa a trabalhar em um órgão público. Seu setor de trabalho é o Almoxarifado. Seu chefe lhe diz que, entre outras atividades, é sua função fazer a compra do café para toda a instituição.
Entretanto, ao invés de escolher de forma subjetiva, você precisa definir objetivamente, por meio de critérios imparciais, porque escolheu aquela marca. Ou seja, você vai precisar provar para seu chefe – e para a sociedade – seus critérios objetivos de escolha, por exemplo:
- Nível de torrefação do café;
- Selos de qualidade que aquela marca apresentou;
- Grau de pureza do grão;
- Comparação do preço dessa marca, com as outras que tinham no supermercado;
- Presença ou não de impurezas no momento da escolha do grão;
- Nível de acidez do café após testes de laboratório.
(desculpem, especialistas em café, se eu disse alguma besteira)
Seu chefe então lhe diz que, além do café, você precisa fazer a especificação de outros produtos como: cadeiras, mesas, açúcar, lâmpadas, impressoras, materiais elétricos, eletrônicos, etc.

É assim que as compras públicas são realizadas. Não se pode adquirir um produto com escolha direta de marca, nem mesmo direcionar para uma marca (salvo algumas exceções). É preciso descrever objetivamente os requisitos daquele produto desejado e, porque eles são importantes para o interesse público.
Percebe o desafio? Fazer uma compra pública é ir na direção oposta de qualquer compra pessoal que já fez na vida. E ninguém entra no serviço público como especialista em café, mesa, cadeira, açúcar e equipamentos, tudo ao mesmo tempo.
Mas, vamos considerar que você fez o maior esforço possível de chegar a requisitos de qualidade de um bom café, que custa em média R$ 10,00 o pacote. Agora, vem outro problema. Do outro lado da licitação, tem fornecedores (não são todos) que sabem vender café ruim como sendo bom. Em outras palavras, ele sabe atender à sua descrição, sabe que é de baixa qualidade e consegue vender um café que tem um custo para ele de R$ 2,00 por R$ 10,00.
Portanto, vou resumir porque é um desafio fazer a especificação de produtos de qualidade para uma licitação:
- Em sua maioria, os agentes públicos não conhecem profunda e tecnicamente os produtos que precisam descrever;
- Muitos agentes públicos não são capacitados adequadamente, começam a trabalhar com compras públicas sem qualquer orientação ou treinamento;
- Em comparação à qualquer compra particular, a compra pública tenta limitar o máximo possível a subjetividade e a liberdade na escolha da marca;
- Do outro lado da mesa, alguns fornecedores que conhecem o “mecanismo”, tentam se aproveitar da situação, vendendo para o órgão um produto de baixa qualidade, a fim de ampliar o seu lucro.
OK. Você já sabe que é um desafio. Mas você ainda precisa cumprir sua função, e tem que fazer a compra, certo? A seguir, vou te dar algumas dicas que podem ajudar.
Como fazer a especificação de produtos para licitações?
Vou responder de forma muito prática, sem entrar muito em questões acadêmicas ou teóricas.
- Converse com os (bons) fornecedores – o fornecedor é quem mais conhece do produto, tente identificar com ele os principais requisitos de um produto de boa qualidade. Mas cuidado! Não é para copiar e colar uma especificação de produtos do próprio fornecedor, porque assim ele pode direcionar a licitação para sua própria empresa, o que é passível de responsabilização do agente público e da empresa. Por isso, converse com vários fornecedores e faça esse filtro, tendo em mente o interesse público e a ausência de direcionamento;
- Pesquise contratações similares – com certeza, outros órgãos já compraram o que você precisa, sendo assim, é preciso identificar requisitos de qualidade que eles usaram em suas contratações. Você pode usar o Google mesmo. Voltando ao exemplo do nosso café, você pode pesquisar por “café licitação”, “café termo de referência”, “aquisição de café” e outros termos relacionados. Mais uma vez, não é para copiar e colar, entenda o que você está pedindo. Se você não consegue entender determinado requisito, não peça. Até porque você pode se enrolar ao ter que analisar tecnicamente uma proposta durante a fase externa de uma licitação;
- Identifique colegas experientes em compras do mesmo objeto – algumas vezes, no seu órgão, tem aquela pessoa que já passou por licitações de um determinado objeto, e ela já teve problemas em licitações passadas. Com certeza, ela pode te indicar algum requisito importante que não pode faltar na sua descrição;
- Identifique laudos técnicos que podem ser solicitados – em sua pesquisa, talvez algum órgão solicitou determinado laudo técnico aos fornecedores e não teve problema no decorrer da licitação. Você pode fazer o mesmo. O cuidado aqui é com a restrição à competitividade. Para isso, converse com a equipe de planejamento, com o setor de licitações, pregoeiro/agente de contratação ou o gestor administrativo, para decidir conjuntamente se pedem ou não o respectivo laudo;
- Verifique a possibilidade de fazer uma adesão à ata de registro de preços (carona) – a carona é quando um determinado órgão faz uma adesão à outra compra pública que permite esse procedimento. Não vou entrar em detalhes. A vantagem, neste caso, é que você sabe antecipadamente qual a marca a ser fornecida, porque ela já passou por um processo de licitação. A adesão não substitui o planejamento de uma compra, mas pode ser uma ótima solução para adquirir um produto de qualidade. Verifique com o setor de licitações se é possível e como fazer esse procedimento.
Para fechar, de forma muito breve, vou destacar o que considero ser uma inovação da nova lei de licitações, em termos de especificação de produtos.
Nova lei de licitações: uma luz no fim do túnel?
A nova lei de licitações (Lei n.º 14.133/2021) permite, de forma excepcional, que a Administração possa indicar uma ou mais marcas na hipótese de padronização do objeto. A previsão está contida no art. 41:
Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:
I – indicar uma ou mais marcas ou modelos, desde que formalmente justificado, nas seguintes hipóteses:
a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) em decorrência da necessidade de manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração;
c) quando determinada marca ou modelo comercializados por mais de um fornecedor forem os únicos capazes de atender às necessidades do contratante;
d) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação de determinada marca ou determinado modelo aptos a servir apenas como referência;
Aliás, a padronização é um dos princípios que devem nortear a aquisição de produtos, conforme art. 40, inciso V, alínea “a”. Ainda sobre o processo de padronização, o art. 43 estabelece como isso deve acontecer:
Art. 43. O processo de padronização deverá conter:
I – parecer técnico sobre o produto, considerados especificações técnicas e estéticas, desempenho, análise de contratações anteriores, custo e condições de manutenção e garantia;
II – despacho motivado da autoridade superior, com a adoção do padrão;
III – síntese da justificativa e descrição sucinta do padrão definido, divulgadas em sítio eletrônico oficial.
§ 1º É permitida a padronização com base em processo de outro órgão ou entidade de nível federativo igual ou superior ao do órgão adquirente, devendo o ato que decidir pela adesão a outra padronização ser devidamente motivado, com indicação da necessidade da Administração e dos riscos decorrentes dessa decisão, e divulgado em sítio eletrônico oficial.
Portanto, com base nos dispositivos da nova lei de licitações, entendo que se um processo de padronização for instaurado e concluído adequadamente, uma marca pode, sim, ser utilizada como a única a ser aceita pela Administração. Além disso, a norma ainda permite que um determinado órgão faça uma espécie de “adesão” a processo de padronização de outro órgão, respeitando as disposições da lei.
Considero que essa é uma importante inovação da lei, com perspectiva de finalmente reduzir o número de produtos de baixa qualidade adquiridos pelos órgãos públicos.
Espero que esse artigo sobre a especificação de produtos tenha sido útil para você. Se quiser receber outros artigos semelhantes, além de notícias e conteúdos recomendados da área de licitações e contratos, inscreva-se gratuitamente na minha newsletter. Basta apenas subscrever com seu e-mail abaixo:
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Sucesso na sua licitação!
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