Recentemente, após um bom “debate” com uma colega de trabalho, me surgiu uma importante questão: o órgão público pode realizar a dispensa de licitação de um objeto, após ter realizado e contratado o mesmo objeto via licitação? Ou estaria o órgão realizando o fracionamento de despesas?
Para minha surpresa, não encontrei – até agora – nas minhas principais referências, uma resposta definitiva para essa questão. Sendo assim, neste artigo, tomo a liberdade de trazer os meus argumentos e a minha opinião.
Espero, sinceramente, que você me ajude a debater esse assunto e, quem sabe, me mostrar que estou errado. Vamos lá?
Contextualizando
Para entender melhor a questão, a melhor forma (para mim) é pensar em um exemplo prático. Vamos pensar, por exemplo, que se trata de uma aquisição de cadeiras e mesas de escritório.
Suponha que o gestor administrativo do órgão realizou no exercício financeiro (ano) corrente um pregão eletrônico para aquisição de cadeiras e mesas de escritório, no valor de R$ 100 mil. O pregão ocorreu em janeiro, os bens foram entregues e pagos em março (eu sei, estou sendo bem otimista).
Contudo, ainda no mesmo exercício financeiro, o gestor teve uma demanda extraordinária não prevista com a chegada de mais 10 servidores no órgão e, com isso, houve a necessidade de adquirir mais 10 conjuntos de cadeiras e mesas. O total estimado da contratação seria de R$ 10 mil.
Pode o gestor realizar uma dispensa de licitação por baixo valor, com base no Art. 75, inciso II, da Lei 14.133/2021?
Art. 75. É dispensável a licitação:
(…)
II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras;
Em um primeiro momento, a resposta seria “sim”. O problema reside no § 1º do mesmo artigo, que busca evitar o chamado fracionamento de despesas. Veja o que dispõe o artigo:
§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:
I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;
II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.
Não pode
Em outras palavras, no caso hipotético, o inciso II do art. 75 permite a realização da dispensa de licitação. Por outro lado, o § 1º não permite, já que naquele exercício o órgão executou despesas com objeto de mesma natureza – a aquisição realizada por meio do pregão no valor de R$ 100 mil.
Portanto, mantendo esse entendimento do § 1º , a solução permitida ao gestor seria apenas a realização de um novo pregão (desconsidere neste caso soluções alternativas como “pegar emprestado”, remanejar, etc.).
Conforme me enviou a colega citada anteriormente, esse entendimento foi expresso pelo mestre Renato Fenili em uma live – especificamente, depois do minuto 26.
Implicações práticas
Talvez, pela primeira vez, eu não me convenci com a resposta do Renato.
Primeiro, não acredito que a aquisição de cadeiras e mesas, neste caso, poderia ser enquadrado como uma dispensa emergencial. Não acho que esteja na situação de “emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares”.
Portanto, por essa ótica, não seria um enquadramento legal aceitável.
Então, pensei em algumas implicações práticas da impossibilidade de usar a dispensa de licitação por baixo valor e, neste caso, recorrer ao pregão.
Intempestividade
Os servidores precisam de um lugar para sentar e trabalhar, portanto, a demanda não vai desaparecer. O órgão precisa atender à necessidade pública.
A solução do pregão seria atendida em, no mínimo, 3 meses. Enquanto isso, onde os servidores iriam trabalhar? No chão?
Custos processuais
Todo processo licitatório tem custos de realização. É possível até discordar do valor absoluto do custo administrativo de um processo, mas ele existe.
A estimativa do Portal Sollicita, realizada pela Professora Lindineide Cardoso é de que uma licitação custa aproximadamente R$ 27 mil.
Portanto, no caso hipotético, além do pregão ser uma solução intempestiva, ele também seria altamente custoso para o órgão, já que ele gastaria R$ 27 mil para adquirir apenas 10 conjuntos de cadeiras e mesas, por um valor estimado de R$ 10 mil.
Reforço contrário ao Planejamento
Ao manter essa premissa, acredito que haveria um reforço contrário ao planejamento por parte dos gestores nas próximas aquisições. Imagino que eles poderiam pensar assim:
“Bom… se eu não posso realizar uma dispensa após uma licitação, vou privilegiar então nas minhas contratações primeiro a dispensa e, atingindo o limite desta, aí faço uma licitação”.
Em resumo, adotar o pregão, neste caso, infringiria no mínimo os seguintes princípios da Lei 14.133/2021: Eficiência, Interesse Público, Razoabilidade, Proporcionalidade, Celeridade e Economicidade.
Onde quero chegar
Na minha opinião, essa interpretação restritiva do § 1º do Art. 75 da Lei n.º 14.133/2021, de modo que está proibido o gestor de realizar qualquer dispensa de baixo valor após uma licitação de mesmo objeto é acorrentar o gestor público e tirar sua liberdade de escolher a dispensa de licitação em situações legítimas, mas que não foram previstas.
Alguns podem dizer: “Ah, mas ele tinha que ter previsto isso!”. Ao contrário do que essas pessoas acreditam, o gestor público não é um deus onisciente, capaz de prever todas as demandas extraordinárias, e capaz de se preparar para todas elas um ano antes.
Planejar é estar pronto para o futuro, e não ter a ilusão de conhecê-lo.
Em termos práticos, serial razoável acreditar que – em nosso caso hipotético – o gestor público pode, sim, usar a dispensa de licitação por baixo valor, ainda que após uma licitação de mesmo objeto. Uma espécie de “reserva de emergência” para demandas não previstas anteriormente.
E não estaria este gestor realizando o fracionamento de despesas.
E você? Concorda comigo? Estou totalmente errado? Tem jurisprudências sobre o assunto? Contribua com esse debate. Deixe seu comentário ou entre em contato para autorizar a publicação da sua opinião.
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Excelente tema! é um assunto que também me traz dúvidas e que havia formulado entendimento, por leituras anteriores, pela impossibilidade de realização de dispensa de licitação por baixo valor após a realização de um pregão do mesmo objeto. Após ler o seu texto e também a matéria do Portal Sollicita (https://portal.sollicita.com.br/Noticia/17270/%C3%A9-poss%C3%ADvel-realizar-uma-dispensa-e-depois-um-preg%C3%A3o%3F), estou começando a considerar a viabilidade. Mas gostaria de encontrar um julgado sobre o assunto pelo TCU, porque no fim do dia, são os ilustres ministros que “fecham questão” sobre algo assim. Parabéns Leandro!
O caso deve ser analisado considerando a “intenção do gestor”, a previsibilidade da demanda e os impactos administrativos da decisão.
Se um Tribunal de Contas questionar a decisão, é necessário estar preparado para comprovar, por meio de documentos, que a nova aquisição não havia sido planejada previamente (deus onisciente) e que não teve o propósito deliberado de evitar a licitação.
Portanto, sua linha de argumentação é válida e deve ser considerada nos debates sobre a aplicação prática da Lei nº 14.133/2021.
Parabéns pelo artigo.
Obrigado pela contribuição Leonardo!
Obrigado Alex!